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Do ENARE ao ENAMED — causa ou consequência das mudanças na medicina?

Por Alexandre Borges Filho
Publicado:  at  02:30 PM

Dica rápida: no final do artigo há um gráfico interativo sobre vagas de residência médica no Brasil. Você pode explorar os dados, filtrar por região e comparar a evolução das vagas autorizadas, ofertadas e preenchidas ao longo dos anos.

Capa do artigo do ENARE ao ENAMED

É curioso estar no 10º semestre de medicina. De um lado, os plantões, o gostinho da responsabilidade e o internato nos empurram para a reta final. Do outro, ainda tenho contato constante com colegas que estão só começando o curso. Essa travessia entre o mundo acadêmico e o profissional trouxe uma reflexão quanto às mudanças que presenciei ao longo dessa jornada. Nesse contexto, a transição do ENARE para o ENAMED deixou de ser só “mudança de prova” e virou mudança de cenário.

E talvez essa mudança marque, de forma silenciosa, um marco evolutivo do estado da formação médica no Brasil. Evoluções nem sempre são positivas, mas são inevitáveis. Mas será que isso é ruim? O que perdemos com essa mudança? Temos como resgatar algumas vantagens antigas que foram perdidas?

De qualquer forma, o Brasil de 2025 não é o Brasil de dez anos atrás em termos de formação e trabalho médico. Adaptação é a regra do jogo. Nesse artigo, vou contextualizar alguns dados recentes da Demografia Médica 20251, refletir sobre as mudanças e tendências das provas de residência e como que o mercado está reagindo a elas.

Contextualizando

Crescemos. Muito.

Nos últimos seis anos, o Brasil viu um crescimento expressivo no número de médicos: de 480.882 em 2018 para 597.428 em 2024 — um aumento absoluto de 116.606 novos médicos (ou ~25%).

A proporção de médicos por habitante subiu de forma consistente e a curva de crescimento continua apontando para cima. Em outras palavras: mais gente disputando as mesmas portas de entrada da residência. Mas será que o crescimento é uniforme ao crescimento da demanda brasileira?

Fonte: Demografia Médica no Brasil 20251.

A cara da medicina está mudando.

Além do crescimento recente, as projeções da Demografia Médica 2025 indicam que, até 2035, o total e a densidade de médicos continuarão subindo. O gráfico abaixo traz a evolução por sexo e evidencia a feminização em curso, uma vitória para a equidade de gênero na profissão. Você pode, se preferir, ativar a visualização de “crescimento” para ver a variação anual do total absoluto de médicos.

Fonte: Demografia Médica 2025 (série histórica e projeções por sexo)1.

A explosão das vagas de graduação

É impossível falar de ENAMED sem olhar a montanha de calouros que entrou no radar nas duas últimas décadas. As vagas autorizadas mais do que triplicaram em vinte anos: saíram de 13.820 em 2004 para 48.491 em 2024. O protagonismo dessa expansão está nas instituições privadas — elas respondem por quase quatro em cada cinco vagas novas desde 2013.

Fonte: Demografia Médica 2025 (série histórica e projeções por sexo)1.

Estabilizou o número de vagas?

Além disso, temos atualmente, a tramitação da abertura de 184 novos cursos de medicina e a ampliação de vagas em 110 cursos já existentes. Se aprovados, não temos certeza quantas vagas exatamente seriam adicionadas, com estimativa entre 15.000 e 20.000 vagas,o que poderia representar um aumento potencial de quase 45% em relação às vagas atuais.

A graduação explodiu — e a residência?

Em seis anos entrou muita gente no mapa da medicina: 157.340 novos médicos contra apenas 2.072 novas vagas de residência. Na prática, o aumento absoluto no número de médicos foi cerca de 76 vezes maior que o aumento nas vagas de residência — um descompasso que fica ainda mais claro quando olhamos para as taxas: ~36% de médicos no período, contra ~9% de vagas de residência (considerando vagas autorizadas; as ofertadas e preenchidas tendem a ser menores).

Fonte: Demografia Médica 2025 (série histórica e projeções por sexo)1.

Naturalemnte, com o aumento da demanda por especialização, o número de candidatos por vaga também cresceu. Com isso, a complexidade de gerir um exame nacional unificado para a residência médica aumentou significativamente. Visando diminuir a complexidade do processo de entrada da residência, outras instituições que realizavam seu próprio processo seletivo (ao exemplo do Ceará, com a SURCE) foram incorporadas ao ENARE.

A ponte: do ENARE para o ENAMED

Com o aumento da competição, a busca por diferenciação de candidatos é natural. Se o ENARE tentou equilibrar a balança com análise curricular, o mercado respondeu com criatividade (para o bem e para o mal). O que era incentivo à vivência acadêmica virou, em muitos lugares, uma corrida de pontos: certificados sem substância, projetos que existiam mais no papel do que na prática, “checklists” de atividades que nem sempre se traduzem em competência clínica.

Teve uma época que até pelas redes sociais apareciam propagandas de cursos de como completar a análise curricular, principalmente do ENARE. Isso, claro, não é culpa da prova — mas é uma consequência previsível de um sistema que premia quantidade em vez de qualidade. Além disso, dentro da própria banca, a aceitação de atividades extracurriculares variava muito entre avaliadores, o que gera desconfiança e, consequentemente, a judicialização de resultados e a demora na divulgação.

Aqui entra o ENAMED com a promessa de uma régua única. A proposta é simples de enunciar e complexa de implementar: menos contabilidade de currículo, mais foco no domínio cognitivo e técnico/teórico.

Quando soube da notícia, minha reação inicial foi de incredulidade. Eu havia gasto incontáveis horas preparando meu currículo para o SURCE (antiga prova de residência do Ceará, que foi integrada ao ENARE) e ao ENARE. Por outro lado, entendo a mudança dos avaliadores. Porém, fiquei com a sensação de que perdemos algo valioso no processo.

Temo que essa abordagem tenha armadilhas associadas, as quais vamos ver consequências nos anos a seguir.

A realidade do curso de graduação

Em todo e qualquer curso, há sempre aqueles que se destacam e aqueles que enfrentam dificuldades. Na medicina, essa disparidade é ainda mais evidente devido à natureza intensiva e exigente do curso. Porém, a constante pressão de ter um currículo robusto para aumentar suas chances na residência forçava os estudantes a experimentar certas atividades que talvez não teriam por outros incentivos, principalmente no início da graduação, como:

Onde mora o risco

A nivelação por régua única pode ser uma solução para a problemática levantada, mas não é uma bala de prata. Com certeza, algumas armadilhas são:

Eu gostava da ideia de que congresso, extensão e iniciação científica “valiam alguma coisa”. O problema é quando a quantidade de atividades dita sua pontuação, não a qualidade das mesmas. O desafio do ENAMED é separar joio e trigo sem jogar fora o valor formativo do que extrapola a sala de aula.

Prova única, propósito plural

Talvez estejamos, silenciosamente, um pivô importante na formação médica. O ENAMED tem a chance de trazer clareza para um funil que ficou turvo. Mas prova não substitui formação, nem resolve sozinha oportunidades desiguais para um país desigual.

Se a régua nacional vier acompanhada de preceptoria forte, cenários de prática robustos, mecanismos de equidade e incentivos honestos à interiorização, a gente tem uma história boa para contar daqui a alguns anos.

Se vier sozinha, a gente só vai treinar melhor para a prova — e formar pior para a vida.

Eu prefiro a primeira história. Se você é estudante, preceptor ou gestor, que indicador você acompanharia primeiro para saber se o ENAMED está melhorando o caminho?

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Bônus: Onde estão as vagas de residência?

Mesmo dentro do funil apertado, a oferta não é homogênea: algumas especialidades seguem concentrando as vagas enquanto outras encolhem. O painel abaixo traz um pacote interativo para explorar essa distribuição — no modo “Ranking” você vê as campeãs de 2024, em “Linha do tempo” compara a evolução das especialidades fixadas e, em “Crescimento”, identifica quem mais expandiu (ou encolheu) desde 2018. Use a busca para localizar a especialidade que você procura e fixá-la na comparação.

É recomendado visualizar o gráfico pelo computador para melhor experiência, não pelo celular.

Fonte: Demografia Médica 2025 (vagas autorizadas de R1 por especialidade, dados MEC). Elaboração própria.

Referências

  1. SCHEFFER, M. (coord.). Demografia Médica no Brasil 2025. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2025. ISBN 978-65-5993-754-7. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/demografia_medica_brasil_2025.pdf. Acesso em: 24 set. 2025.

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